O bom velho levantou penosa e lentamente da cadeira. Faz tempo que já não tinha aquela força e há mais tempo ainda as dores no joelho incomodam. No movimento, derramou um pouco do café que trazia, queimando os dedos. Esboçou uma praga, mas se conteve. Afinal, era Natal.
Chegou enfim à porta e abriu ao visitante:
- O que deseja?
- É você?
- Eu? Eu quem?
- Aquele de que todos falam.
- Não... - essa pergunta nunca deixou de deixá-lo fora de si, no entanto, pensou no visitante e na sua provável confusão, respirou fundo e mudou a resposta - Sim.
O homem peculiar que esperava em meio à neve mostrou indecisão, ou descrença ou qualquer coisa do tipo. Sei que ficou calado por quase um minuto, como se buscasse entender a resposta dada, com medo de fazer nova pergunta
- Posso entrar?
- Claro, desculpe minha falta de educação, você deve estar congelando. Venha, sente-se aqui, ou em qualquer lugar que lhe agrade. Volto num instante com chá. Você prefere limão ou canela? Eu particularmente prefiro o segundo. Ou quer café? Certo, apenas água. Volto num instante.
O homem vestido de preto aproveitou para observar a sala. Era pequena, com móveis antigos e rústicos, como de costume naquela região. Na lareira crepitava um fogo aconchegante, de onde também vinha a maior parte da iluminação do espaço. Duas poltronas repousavam, uma de frente para a outra, com uma mesinha redonda de mogno ao centro. Havia apenas uma janela, não muito grande, de onde podia-se ver um poste iluminado lá fora. Um porta retrato descansava em cima da lareira.
- É casado? Perguntou quando o velho voltou com sua água.
- Sim... e não, novamente. Ela morreu há dois anos.
O homem sentou-se numa das poltronas e deixou o chapéu preto sobre a mesa. O velho moveu-se em sua direção, oferecendo-lhe o copo.
- Então, o que posso fazer por você?
- Faço parte de um grupo de pesquisa. Estamos estudando os humanos. Nosso estudo é bem extenso. Fazemos testes comportamentais para melhor entendê-los, mas para isso é preciso levar em conta uma grande quantidade de material histórico prévio ao objeto. Além da história, é preciso conhecer as crenças individuais de cada objeto - estudo interessante - ou mesmo as não-crenças. Finalmente, também percebemos que os objetos são afetados por um conjunto de padrões e crenças solidificadas no emaranhado de ideias que carrega uma sociedade. E cada sociedade tem as suas. Contudo, como coordenador no departamento de estudos humanos do ocidente, não pude deixar de perceber diversas similaridades entre os mais variados círculos sociais. Ou seja, existem crenças e padrões recorrentes em muitas das sociedades que se encontram a oeste da Rússia. Um deles, é o seu caso - o bom velhinho ajeitou-se na poltrona e tinha ar de quem ainda nem começara a entender -. Não é de fato surpreendente. Afinal, existe uma espécie de conexão geral entre todos os países do globo, especialmente entre aqueles que mantem certos pilares filosóficos em comum, como é o caso da maioria dos povos ocidentais. Há também uma densa carga histórica que ajuda a explicar por que o índice de congruência cultural - chamamos de ICC - entre os povos de minha jurisdição é relativamente alto. Ou seja, não é comum que eu tenha que verificar fatos como este em pessoa. Porém, é a natureza do fato que me desperta a curiosidade. Veja bem, há diversos tipos de comemoração neste dia festivo em meio aos povos em questão, mas quase todos de alguma forma acabam por mencionar você, positiva ou negativamente. Pois bem, exigi uma pesquisa mais detalhada sobre sua pessoa e encontramos um vasto material, mas nem tudo era coerente. Decerto sabemos que existem informações enganosas ou incompletas, ou até mesmo ingenuamente compostas, no entanto havia uma parte mínima do acervo que contava uma versão completamente diferente do material mais recorrente. Tamanha disparidade chamou minha atenção e resolvi verificar alguns dados por mim mesmo. Quando relacionei as informações que tínhamos com os dados biográficos mais verossímeis, cheguei a - aí sim - surpreendente conclusão de que a grande maioria do material estaria equivocada. Posso imaginar que situações assim ocorram quando há necessidade de fazer humanos acreditarem em algo diferente da realidade para que haja um bem comum. Mas neste caso, é exatamente o contrário. A história que até agora tenho constatado ser verdadeira - e que pouco ou quase nada circula - é justamente aquela que, pelos cálculos, traria um maior desenvolvimento à sua raça. Portanto, julguei ser necessário que viesse em pessoa esclarecer tamanhas dúvidas. Você poderia me explicar?
Foi a vez do velho ficar em silêncio por quase um minuto completo. Depois, soltou uma longa e gutural risada, seguida de uma sessão de tosse.
- Você é uma das coisas mais interessantes que me aconteceram, com certeza! Se minha esposa estivesse aqui ela certamente já haveria mandado-o para fora, alegando que não suportaria tantas asneiras. Mas, sendo quem sou, não vejo razão para não acreditar no que você me disse. Além disso, tem algo estranho e diferente nos seus olhos. Quase consigo sentir suas dúvidas, sua honestidade. Eu só lamento que... eu temo que não saberei responder suas perguntas.
- Quem sabe se eu me fizesse mais claro. Você participa de alguma forma do fornecimento dos presentes?
- Não, não, céus! Ha, ha, ha.
- Mas e na confecção dos ideias que circundam as festividades?
- Bem, veja... não é raro acontecer de alguém um dia ter uma ideia boa e também uma boa intenção, mas outra pessoa, que não está comprometida com as mesmas boas intenções, usa sua ideia de forma leviana e às vezes maquiavélica. Essa é mais ou menos a minha história. Ou a história do Natal.
- Entendo. Mas, por favor, explique-me. Qual era a sua ideia?
- Eu simplesmente sonhei um dia ver todas as pessoas se importando mais com os outros do que consigo mesmas. Para exemplificar isso, comecei a dar presentes feitos por mim, minha esposa e meus filhos a quase todas as pessoas que conhecíamos. Mas os presentes não tem nenhum significado em si mesmos e... - abaixou a cabeça, abatido - dou-te certeza absoluta que nada tenho a ver com o que acontece hoje... no mundo.
- Estou muito agradecido pelas respostas. Tenho que ir imediatamente reportar e documentar o que ouvi. Obrigado pela água. O homem peculiar ia se retirando em direção à porta, quando foi interrompido pela voz do velhinho:
- Um dia ainda vai acontecer, sabe!
- Desculpe, acontecer o quê?
- Todas as pessoas se importarem mais com os outros do que consigo mesmas... Sei que não sou eu que farei com que isso aconteça, mas ainda assim acredito que um dia este meu sonho se realize, mesmo que não esteja mas vivo para vê-lo.
-Entendo... Com todas as pesquisas que fizemos até agora, posso afirmar que a esperança é o principal combustível do humano... como é claramente no seu caso. Para o bem da sua raça, também tenho a esperança que sua visão se concretize. Obrigado, Nicolau.