26.12.09

Natal - parte 3

Passava o dedo na borda da xícara apreensivamente com movimentos não tão contínuos; o dedo parecia confuso, não sabia ao certo para que sentido se moveria, alternando várias vezes entre horário e anti-horário. Sempre achou que em momentos como esse, ouviria os passos do relógio, no entanto, conseguia escutar apenas os carros na rua e um pouco dos rumores da conversa da vizinha: provavelmente fofoca... nunca se viu uma vizinhança fofoqueira como essa, ninguém merece! Quando mudei-me para cá, achei que seria um canto sossegado, exatamente como precisava... como preciso... mas não completou-se direito uma semana e todos já sabiam da minha história! Deve ser aquela empregada... devia demiti-la, isso sim... se bem que ela limpa muito bem... e é Natal... bem, quem sabe depois; espero mais uns poucos meses e mando ela para rua! Prefiro alguém em que posso confiar minhas palavras do que confiar meus carpetes.
Enfim, o tão esperado som enche a sala com suas vibrações irritantes. Os dedos, que antes dançavam feito loucos desnorteados adquiriram instantânea sobriedade e avançaram ao telefone amarelo - este que se encontrava fora de seu devido lugar, do lado da xícara de chá.

- Alô... sim, sou eu, delegado, pode falar... sim... aham... mas, isso... não, claro, entendo, mas... isso... seu delegado, isso quer dizer alguma coisa... de verdade? Quer dizer, já estamos procurando faz tempo e, sei da sua capacidade, mas e se ela já tiver saído da cidade? Vocês vem com vários palpites, mas nenhuma pista concreta, você me entende? Daí a gente fica com uma expectativa, sonha, se preocupa, mas nunca dá em nada... - a voz dela começava a definhar, num choro trêmulo e tímido - e estou cansada... não quero mais me frustrar, ficar procurando e não achar...

Ela parou por um momento, tomando fôlego. O coitado do delegado no outro lado da linha não sabia o que falar. Ele também não acreditava mais. Normalmente, elas voltam dentro de duas semanas, mas já tornou-se questão de meses... nem sequer uma ligação... talvez o melhor seja não encontrá-la... uma filha assim... Trocaram suas últimas palavras, como se estivessem se despedindo num velório e desligaram.
Renata inspirou profundamente e soltou o ar aos poucos, enquanto abria os olhos e enxugava as tímidas lágrimas que ousaram aventurar-se. Pegou bolsa, celular, chave. Ao passar pela geladeira deparou-se com um convite de sua irmã. Alcançou-o com sua mão incrédula: "Talvez seja bom ter alguma coisa para fazer à noite".

***

Sabia que sua madrasta dissera alguma coisa, mas os fones de ouvido continuavam imóveis e a sua voz misturava-se com o barulho da música. A mistura até que não era ruim... a música também. Os olhos inertes reagiam apenas à mudança de cores na tevê. A mão também sofria com a inércia da troca constante de canais. Estava cheio, lotado. Não conseguia absorver mais nenhum imagem. Ou som.
Um ritmo persistente começou a invadir a música. Crescia cada vez mais, tornando-se estridente até ser reconhecido: atendeu o celular. Algumas monossílabas pronunciadas, uma olhadela no relógio e despedida. Buscou a mochila, que não estava longe, ajeitou o fone que caíra da orelha direita, murmurou algo para a madrasta que retrucou avidamente. A porta bateu - com ele para fora.

***

Assim que sentiu o chão, ouviu a música da cidade: pessoas caminhando de volta para casa, carros apressados carregados de presentes, o choro do homem às suas costas. Olhou para suas mãos dilaceradas com espanto. A face distorcida do homem em prantos o afastou daquele lugar. Não lembrava da última vez que seu coração bateu tantas vezes com tamanha intensidade; ele se arremessava contra seu peito, numa desesperada medida para fugir e sentir ele mesmo a realidade que o cercava. Foi somente depois de vários passos que percebeu estar sem os fones de ouvido. Agitou-se, desconsolado, imaginando se o fone ainda estaria lá, revolvendo em sua mente os diversos fins que poderia ter tomado, enquanto suas pernas batalhavam para decidir se iam em busca dos fones ou não. As ideias iam tomando forma e se concretizando à medida que o tempo passava. Seu pé ainda não havia cessado de bater ansiosamente no chão, apressando a mente a tomar uma decisão. Mas, enfim, uma grande nuvem dissipou-se, permitindo-lhe finalmente decifrar os milhares de pensamentos que lhe ocorriam constantemente. Conseguiu ouvir a si mesmo como nunca antes conseguira.
Após mais alguns passos, seus olhos depararam-se com uma menina de cabelos negros, encostada no muro de um prédio que dava num beco. Seus olhos azuis contrastavam com o cabelo escuro e a pele clara. Suas roupas estavam amassadas e apresentavam insegurança. Havia uma luz diferente naqueles olhos, como se o céu inteiro coubesse neles. Sem querer, quis abraçá-la.
Devia ter ficado muito tempo observando-a, porque ela reagiu de maneira crespa, como se Gustavo a tivesse invadido de alguma forma. Desculpou-se e obteve um tudo bem como resposta. Nunca soube dizer mais tarde exatamente o porquê, se foi a vontade anterior de segurá-la ou o recente reencontro com o mundo, mas fez o que não imaginaria:

- Você parece chateada. Ela redirecionou o olhar, curiosa.
- Não é nada. Passaram-se alguns segundos e se arrependeu da resposta.
- Então... vou indo...
- Quer dizer... você sabe quando... fez uma breve pausa, mas respondeu decididamente. Estou perdida. Ele pareceu não entender, mas procurou em seus pensamentos qualquer resposta que pudesse ajudá-la.
- Eu conheço esses arredores, posso...
- Não - interrompeu a menina - não nesse sentido. Seu olhar nunca o encarava e suas mãos estavam inquietas. Eu fiz algumas escolhas erradas... minha vida não era perfeita, nem um pouco... mas ficou muito pior, entende? Eu... eu esperava ser tudo diferente, ter encontrado o que queria, eu achava que ia ser feliz... mas as coisas... elas deram muito errado... e já não posso voltar atrás... eu não sei mais se consigo dormir em paz. O menino poderia esperar qualquer coisa, menos tamanho desabafo. Ele mesmo sentiu impulso para que contasse as suas próprias frustrações, mas algo o impediu.
- Está escurecendo. Acho melhor sairmos daqui, é meio perigoso. Ela assentiu. Passaram alguns segundos sem que ninguém falasse nada. A cada segundo o menino se obrigava mais a soltar as primeiras palavras. Ela estava contente apenas em estar acompanhada. Pelo menos sentia grande alívio; começou a soltar os grilhões.
- Eu... eu... eu moro com a minha madrasta. Não lembro da minha mãe e meu pai morreu já faz um tempo. A paz que começara a tomar espaço no interior da jovem estremeceu ao ouvir "pai". Ela é OK.
- Não vejo meus pais há dois meses. Quer dizer... deixa pra lá. Seu rosto permaneceu admirando os calçados.
- Você... não quer vê-los?
- Não... eu... quero, mas... é complicado.... acabei de ver meu pai, na verdade. Gustavo, de alguma forma, sentiu que não deveria perguntar mais fundo. Mudou de assunto, e assim ficaram por um tempo, se alimentando do mundo. Até que, já escuro, depararam-se com uma construção bem iluminada e movimentada. Chegaram mais perto, mas ainda não conseguiram decifrar o que era aquilo ou o que aconteceria, viam apenas que as pessoas conversavam e sentavam, aguardando uma apresentação. A proteção das luzes os atraiu. Sentaram ao fundo, fugindo de quaisquer olhares. Estavam descansando um pouco de suas vidas.

24.12.09

Natal - parte 2

Acordou naquela manhã sem o despertador. Na verdade, quase não dormiu, mas procurou ver o lado positivo da situação e logo se pôs em pé, ignorando o espaço vazio ao seu lado na cama. Gostava de se sentir bem e se arrumar a fazia assim se sentir, então fez sua primeira parada do dia no banheiro. Escova de dente, pente, perfumes e outros mais, esteticamente organizados ao lado da pia, eram selecionados um a um pela mão delicada que fazia o melhor uso de cada um deles. A segunda parada foi no guardarroupas. Queria ser casual hoje, para isso não quero usar vestidos... ainda mais que as cores que tenho não combinam com esse dia. Uma calça jeans, sim... mas minha favorita está para lavar... Esta tem uma bela cor, mas não fica tão bem em mim quanto a outra... mas tudo bem, hoje quero cores, mesmo.
No mesmo ritmo escolheu a blusinha que acompanharia o resto do traje, saindo contente de dentro da porta branca que abrigava seu prazeres de cada manhã. Ah, a música! Esqueceu de escolher a música matutina! Vamos lá... devia baixar mais músicas, tentar novidades... ou quem sabe umas mais velhas... ah! Mas é claro! Como podia ter esquecido? É bom já colocar as músicas do coral, assim já me acalmo mais... Música do coral, então!
Por um momento, sentiu vontade de trabalhar, mas não podia. Trabalhar em feriado é desespero... Trabalhar a fazia bem, dava a ela um objetivo a cada dia, uma meta a ser alcançada. Facilmente se destacou no escritório, não só por sua beleza, mas pela determinação que demonstrava todos os dias, como se a empresa fosse realmente sua, como se fosse a sua razão existencial, mas não era... certo? Bem, gosto muito de me manter ocupada, de me sentir útil no trabalho, mas isso não me torna uma viciada... quero dizer, tenho outras coisas que me dão prazer, que me alegram, como... filmes! Sim, odeio ficar parada em casa à toa e um filme sempre preenche minhas noites... ah, e quando tiro uma noite para assistir a um filme, comendo calda de chocolate... hum, mas faz tempo que não faço isso... e se... não, hoje à noite não dá, é verdade... olha outra coisa que me agrada: o coral! Cantar é um dos meus maiores prazeres, certamente... adoro o frio na barriga das apresentações em público, me traz uma sensação de aventura! E o ambiente do coral da igreja também é ótimo... não sou muito íntima de ninguém, mas adoro conversar com as amigas... nossa... tenho poucas amigas... não me lembro de alguma que não seja do coral... por que não há mais mulheres no escritório?! Será que poucas mulheres gostam de contabilidade ou meu chefe é simplesmente machista? Ele é um cara legal... não é muito bonito, mas percebo que ele me olha de vez em quando... quem sabe... Céus! Ele é casado, Júlia! O que você estava pensando?... Por que... Por que ainda estou sozinha?... Pare de pensar nessas coisas, mulher!... E é bom mesmo que você esteja sozinha, veja sua irmã no que se meteu depois de tantos anos casada... Ah, me perdoe, me perdoe... não podia pensar uma coisa dessas...
O momento do café da manhã não a agradou como esperava e desistiu das fibras com iorgute. Desligou o som da música tradicional de igrejas na época de Natal e resolveu sair de seu apartamento, passear por algum lugar, fazer seu tempo passar... Não gostava de ociosidade, fazia-a pensar, e quando muito pensava, sempre algo ruim lhe aparecia em mente. Para que não corresse o risco, desceu as escadas cantando as músicas que tanto ensaiara, deu bom dia ao porteiro e andou rumo à... rumo à floricultura! Adoro flores durante a manhã... Cinco minutos de caminhada e... fechada. Bem, quem sabe uma simples caminhada não alegre meu dia.

***

Não sabia se era tarde, manhã ou noite. Manhã não deve ser. As luzes que transbordavam da cortina vermelha muitas vezes enganavam e ficara muito tempo no quarto. Um vento resolveu bater e revelar o começo da tarde, resvalando nas suas pernas nuas. Resolveu cobrir-se novamente, assim também se sentia mais segura, menos desvelada. Sentia-se suja e não queria que ninguém visse quão suja estava... por dentro. Nem mesmo Eric. Valia tanto a pena fazer tudo o que fez? Na hora as coisas parecem ser tão claras e óbvias, mas aqui... pensando... não faz tanto sentido assim. Seus olhos bateram na cômoda ao lado da cama e foi como se levasse um golpe na cabeça. Os restos de ontem ainda se encontravam lá, ao lado da vodka barata, e só de vê-los sentia-se cansada. Ao mesmo tempo, uma intensa dor, como uma saudade ruim, subiu pelo seu estômago, dando-lhe ânsia e vontade... não uma vontade certa, porque acho que no fundo não quero mais... mas por que me atrai tanto? Odeio ficar indisposta! É uma das que mais odeio! E isso sempre me deixa assim... a dor de cabeça também me atrapalha e o cheiro é horrível...
Por um momento, uma lágrima ensaiou cair pelas olheiras e sentiu-se fraca... e também forte... por um único momento, queria se rebelar como outrora fizera, mesmo que o tenha feito anteriormente para alcançar tudo o que tem agora. Tudo? Pensar no seu passado dava-lhe ainda mais dores de cabeça e esticou o braço para sanar todas as suas angústias. Era muito pouco em relação a ontem, mas era o suficiente para a manhã. Seu peito respirou intensamente e suas dores acalmaram, deixando-a em paz por mais alguns minutos. A preguiça invadiu-lhe o corpo, carregando junto o remorso. Sabia que estava errada, mas não se importava mais. Estava errada a tanto tempo que não fazia mais diferença... Era errada.
Não se sabe quanto tempo passou, mas o cérebro jazia morto enquanto os olhos sonolentos fixavam o carpete tosco. A boca estava aberta, pensou em fechá-la, mas não se importava mais. Nem sequer retirou do rosto a mão culpada. Assustou-se com o mover da porta e quando reparou em quem entrava ficou ainda mais emburrada: Eric.

- Ei gata...

Nenhuma resposta. Sentiu-se mais parecida com o seu pai.

- Tenho que ver uns negócios... tomar conta, sabe... vou voltar mais tarde, viu? Enquanto falava, vestia-se com a roupa de vários dias. Falava com a autoconfiança de sempre, a mesma que a conquistou... e que mais lhe dava raiva no momento. Era tão falsa! Achava-se tão superior aos outros, mas seu nojento bafo revelava apenas o começo da podridão de seu corpo.

- ...e daí a gente vai comemorar, gata! Vem cá, me dá um beijo... vem... um beijo! Eu quero um beijo... gata. Os dentes cerrados revelavam a ameaça. Virou-se e satisfez seu desejo. A sua mão podre a tocava e sentia nojo de si mesma. Não olhou no seus olhos uma única vez. Saiu, enfim... paz? Não... paz era algo que não experimentava há muito tempo... já faz uns bons meses... não podia ser tão ruim antes a ponto de preferir viver assim... ah! Mas ele era ridículo! Não conseguia falar uma palavra com aquele idiota! Como ele consegue me irritar tanto! Tenho tanto o que falar para aquele... aquele...

Depois de alguns minutos de silêncio, chegou à conclusão que tanto evitara por esses longos dois meses: sentia saudades... queria vê-los de novo. Fez um primeiro movimento: sentou na cama. Esperou um pouco e vasculhou com os olhos o quarto bagunçado e pouco iluminado, à procura de sua calça. Não achou. Mais alguns minutos e estava fora da cama. Sentou-se de novo, pensando se era de fato uma boa ideia. Afinal, o que falariam? Um grande medo a assaltou e trouxe as lágrimas que ficaram por tanto tempo presas no corpo frágil e magro. Tantas coisas passaram por sua cabeça que não conseguiu pensar em nenhuma delas, assim como quando se mistura todas as cores e forma-se o branco. Muitos minutos esperaram por ela, para que se recomposse. Decidiu: ia apenas vê-los, mas nunca falar com eles, não suportaria a vergonha. Foi achar sua calça na sala. Calçou o all star preto e o casaco que pegara de última hora quando fugiu de casa - era de seu pai, marrom, sua cor preferida, por mais que seja a cor mais ridícula para se preferir.
O apartamento do pai era mais perto, passaria depois na casa da mãe. Não sabia como ou se iria vê-los, iria apenas tentar. Andou de cabeça baixa e fazia tantos dias que não passava por aquelas calçadas que o cenário mais parecia um extenso dejá vue. Por todo o trajeto caminhava abraçada em si mesma, como se todo o mundo à sua volta estivesse pronto para julgá-la e a única coisa que pudesse protegê-la fosse seus próprios braços franzinos. Seu coração palpitou ao reconhecer as marcas na calçada: estava próxima. Os pés das pessoas passando a distraiam. Há pouco tempo, eram em sua maioria calçados populares, mas agora os sapatos executivos tornavam-se mais frequentes. Riu minimamente em seu interior ao ver um outro all star, mas este vermelho. Se houvesse uma jeito de escolher uma coisa que pudesse levar do seu quarto nesse exato momento, seria, definitivamente, seu all star vermelho. Calçou o preto não sabe por que e se arrependeu amargamente por isso.
Seus passos pararam de seguir o ritmo dos outros à sua volta e desaceleraram. Contou até dez e levantou o rosto. Em seguida virou-o à direita, na direção do prédio azul e branco do outro lado da calçada. Subiu os andares com o olhar até chegar no último e... nada. Uma parte dela sentiu-se aliviada, como se justificasse todos os seus atos. Mas não conseguia reunir forças suficientes para sair dali. As pessoas continuavam cada qual o seu caminho e o corpo da menina ainda menor de dezoito parecia buscar em cada uma delas um incentivo para deslocar-se. Sabia que bastava um passo e sairia dali rapidamente, mas algo a retinha, fazendo-a permanecer imóvel. Fechou os olhos e convenceu sua mente: uma última olhada e sairia. Seus olhos se abriram e buscaram a janela da cobertura com convicção. Sairia daquela calçada em instantes! Mas... pai? o que que ele... está subindo? Não! Assim que seus olhos se encontraram com os de seu pai, apoiado na temida janela, correu como há tempos não corria, finalmente encontrando o incentivo que tanto esperava para seus pés.

22.12.09

Natal - parte 1

É engraçado como não temos controle sobre nossas vidas. Como as coisas podem tão facilmente escapar das nossas mãos; tão rapidamente que nos desconcertam e nos tornam a realidade desinteressante. É engraçado como essa gota se demora para juntar-se ao resto do copo, como se ela realmente não quisesse chegar lá. Interessantes mesmo são essas cores, caramelo, vermelho, sei lá... estou sem paciência para defini-las... apenas saboreá-las... mais um gole... ah! Como uma faca rasgando o corpo... toda a dor que quero agora, é essa dor que me faz melhor, me torna mais justo... sofrer... embalsamar um corpo vivo. A porta bate. Os passos agudos se aproximam do corpo largado à poltrona, de frente à janela. Eles param. Não quero me virar... pra quê? Sei de quem são... sei que ultimamente não me trazem boas notícias, mas eles insistem em falar comigo:

- Marcos...

Só um movimento do copo como resposta. E nem mais à boca consigo consigo levá-lo.

- ...o delegado me ligou hoje... pode ser uma pista... não sei, na verdade, mas quero acreditar...

Essa última frase deve ter sido acompanhada de uma lágrima, com certeza. Pessoas chorando me fazem chorar, mas já gastei todas as minha lágrimas... por essa e outras vidas... tomara que não existam outras vidas... uma já basta, não aguento mais.

- Você não vai fazer nada? - sim, com certeza há lágrimas - Você não pode continuar assim, Marcos... Uma longa pausa me separa dos passos, que por um momento tentam se aproximar, mas desistem não muito longe do início. Ah, como queira que eles viessem até mim e me abraçassem... queria sentir um pouco de calor! Meu corpo já está frio! É esse vento estúpido dessa estúpida janela... como se ela fosse aparecer, como se ela fosse olhar pra mim... como se ela me amasse... não há mais sentido nessa janela se não eu me terminar nela. Ah, minhas pernas já não se movem há tempos... por um momento é bom sentir o sangue correndo por elas e os músculos vibrando... um pouco de trabalho, mesmo que levantar o corpo de uma poltrona já dignifica o homem... mas não suficiente. Ha! o que pode, verdadeiramente, ser suficiente?

Os passos já estavam voltando à porta quando pararam ao o ouvir levantar. Repousou o copo no parapeito e em seguida debruçou na janela aberta. O vento dissipava o bafo de álcool no ar e os pensamentos do médico bêbado. As pessoas parecem tão pequenas, vistas da cobertura do prédio, tão distantes... e se curei uma daquelas pessoas? Tantas passando aqui por baixo e tantas cirurgias feitas, certamente uma delas está ali aos pés do prédio... mas São Paulo é grande... talvez não tenha curado nenhuma delas, talvez nem parentes delas, ou ainda conhecidas... São Paulo é grande, muita gente... ela pode estar em qualquer lugar.

- Marcos? Um tom de esperança saía de sua voz, na expectativa que ele virasse não só a cara, mas o rumo de sua vida. Estava enganada. O chão ficou mais atraente. As cores se misturavam às pessoas. A alma já estava de pé no parapeito, bastava apenas o corpo segui-la. Os olhos cercaram a rua, buscando uma última coisa que pudesse detê-lo... mas a dor era grande demais.

- Marcos?! Acho que ela já adivinhou a minha pretensão. O que tenho que fazer, farei depressa, antes que pense melhor... antes que ela me pare, antes que eu volte a querer viver. Ah, porque a perna tem estar tão pesada assim? Ai! Joelho no parapeito... Como estará a cara dela? Tomara que ela não esteja vendo. Renata...não merece isso. Mas assim é melhor, assim... o quê?

- Marcos! Ela queria correr e pará-lo, mas por um momento o nojo que sentiu um dia por aquele homem lhe veio a mente, no entanto, foi seu marido, o amou antes na vida, tiveram uma filha... ah, por que isso foi acontecer? Não há quem mereça isso, não há! Eu cuidei dela como pude, eu a amava com a minha vida! Talvez o trabalho atrapalhasse um pouco... mas cuidava mesmo assim! E quando não estava, tinha a empregada! Minha irmã, às vezes, também ajudava... Atenção não faltava; eu sabia das notas dela... por sinal, não consegui falar com ela sobre a nota de Português... ela sempre foi bem, mas tirou uma nota ínfima... por quê? Por que não consegui falar com ela? Ela estava distante... saía com frequência, dificilmente sabia onde ela estava, como conseguiria conversar com ela? Os horários também não ajudavam muito... principalmente as horas de sábado... talvez, se não trabalhasse de sábado podia ter conversado com ela, tomado um café-da-manhã que seja... imagina se todo sábado de manhã eu a levar para o Ibirapuera, podemos correr juntas!... Podíamos... o quê? Marcos! Não!

A figura diante dos seus olhos o fez parar. A sua posição era claramente desconfortável (confortável seria já estar deitado junto à calçada, sem dor), mas existem coisas que nos fazem parar... tremer... não ter mais controle sobre os próprios membros...O que é que vira? Sei que meus olhos devem estar um pouco turvos, por causa da bebida, mas a imagem foi bem clara, apenas não conseguia mais encontrá-la no meio da multidão... seria um anjo? Ela me lembra algo... alguém... seus traços, o jeito de andar, de olhar... pra mim... A perna perdeu força e antes mesmo de conseguir subir na janela, caiu para trás. Seus olhos fitavam os céus, o único lugar ao qual se poderia olhar... A imagem era processada na mente e tomava cada vez mais forma definida. Seu corpo, suas roupas, seus olhos, seu rosto:

- Sofia!

Renata, que fizera a pouco os primeiros movimentos em direção ao ex-marido parou ao som do nome proferido. Uma brasa cada vez mais fumegante ardia em seu peito. Por que proferiria aquele nome tão evitado nos últimos dois meses justamente naquelas circunstâncias. O rosto enfim virou, revelando uma vasta barba que não devia ser feita há semanas, mas os olhos tinham um brilho que não se via desde... não me lembro...
O encontro de olhares acalmou as emoções da mãe aflita, que olhava com espanto e curiosidade o homem sentado no chão à sua frente. Pelo tanto que o conhecia - 18 anos vivendo juntos não podem ser desconsiderados - sabia que aquele olhar trazia algo diferente, que não estava presente fazia tempos... esperança.

- Sofia... Assim que as palavras saíram de sua boca, levantou-se da melhor maneira que pode. Desequilibrou-se, mas rapidamente apoiou as mãos na poltrona, impulsionando-o novamente rumo à porta. Passou por Renata, atônita, e saiu pelo corredor. Não se lembrava da última vez que sentiu o frio do piso do corredor - e foi quando descobriu que estava descalço, mas isso não importava - e demorou alguns milésimos a mais para lembrar para que lado ficava a escada... ou o elevador... não, a escada; odeio esperar elevadores. A mão tateando a parede ajudava o corpo curvado a se deslocar até o corrimão da longa escada. Os pés desciam compassadamente e impressionou-se da precisão que apresentavam. Só depois do terceiro lance de escadas que lembrou morar num prédio com quinze, não, dezesseis andares - sendo que seu apartamento se encontrava no último. O fôlego já não permitia descer mais degraus, e por um momento pensou em simplesmente deixar seu corpo descer escada a baixo, aproveitando a gloriosa lei da gravidade e a inércia do seu corpo, já pesado pela inatividade. Seu dedo procurou o botão do elevador... qual era, não sei... acho que o de baixo... droga! Apertei o de cima, raios de botão! Agora sim... agora... Ah, Renata descendo... não queria que ela me visse nesse estado... no estado que estou já não sei há quanto tempo... e que estou fazendo com esse casaco marrom?! Não combina nada com essa calça preta!... Renata... Sofia! O elevador!
Quando Renata terminou de descer o mesmo tanto de degraus que Marcos, já não o via. Via apenas as luzes indicadoras do elevador passeando para a esquerda. Tinha que saber o que ele estava aprontando. Continuou a descer as escadas com resistência supreendente para uma mulher já de meia-idade, mas não tão surpreendente quando se trata de uma mãe à procura da filha.
A descida repentina deu-lhe tontura e tentava apressar os números descrescendo no display do elevador sem sucesso. Apoiou o corpo no espelho às suas costas e procurou refúgio aos olhos no teto, mas o desconforto de ser quem era não saía de seu corpo e contentava-se apenas na figura de sua filha... será ter sido uma ilusão? Agora que o pensamento cruzou sua mente, sentiu calafrios de medo... E se nada mudasse? Tudo voltasse a mesma droga de sempre? Eu, aqui, em trapos, sem trabalho, família... sem aonde saber procurar por uma razão de vida... Se o que dizem é verdade, se a esperança é a última que morre... acho que já morri faz tempo.
O alerta do elevador de que já estava no andar térreo o tirou de sua dispersão, conduzindo, trôpego, às portas de vidro que levavam ao pequeno lance de escadas... à calçada... rua... filha... ela estava do outro lado. Não deu grande atenção às buzinas que o advertiam de sua loucura. Ao chegar do outro lado, vasculhou todos os lugares, pessoas e olhares que sua visão distorcida alcançava. A cada segundo que não obtinha o resultado que tanto esperava, o desespero crescia exponencialmente. O ar faltava aos pulmões e já não sabia para que direção olhava, apenas girava em círculos em meio à multidão apressada. E seu olhar finalmente parou ao reencontrar o de sua ex-mulher, que o fitava ao longe, do outro lado da rua, com o queixo estremecendo e os olhos baixando. Todas as forças que restavam a ele se esvaíram naquele mesmo instante, concentrando-se apenas nas suas lágrimas, no seu pranto alto e patético. Deixou seu corpo cair, como queria ter feito lá de cima, mas a única coisa que lhe aconteceu foi esbarrar com um jovem que, até então, estava desconectado do mundo, envolto pela sua música alta, de olhos baixos e chiclete sendo mascado automaticamente por movimentos contínuos que, por sinal, regiam todo o seu corpo, até sua mente. Os fones caíram de seu ouvido e a mochila de seu ombro. Sua mão tocou o chão; os seus tecidos, que clamavam por algum contato físico verdadeiro, satisfizeram-se ao serem rasgados pelo asfalto: meras células... serão recompostas. O que mais lhe incomodou, no entanto, foi deparar-se com a humanidade que já não tinha, com o choro de um bêbado.

9.12.09

A menina do cachorro

A menina conversava com seu cachorro, sentada na grama da pequena praça daquela pequena cidade sob a sombra de uma grande árvore; discorria sobre qualquer coisa não muito importante e seu cachorro a acompanhava num outro ritmo, constantemente mudando de lugar. Eram conversas divertidas e ele era realmente um bom amigo e sempre quando as lições de casa permitiam, não recusava o momento. O cachorro, por não ser humano, não tinha medo de trocar dezenas de "eu te amo" durante o dia... a menina era tudo para ele e ela retribuía o sentimento (sem, claro, a mesma empolgação).

A árvore sob a qual sentavam cresceu e envelheceu, mas continuavam na sua rotina-não-certa de sentarem para conversar sempre que podiam. Muito embora ela podia muito menos. Sobre o tempo do cachorro, não precisa se discutir... afinal, fora se aventurar a cheirar coisas novas e observar as pessoas passando (de vez em quando latir para outro cachorro), não tinha muito o que fazer. Mas a menina, esta acompanhou o crescimento da árvore e com isso as responsabilidades aumentaram e o tempo começou a ficar mais curto. Não tinha grandes preocupações (nem mesmo pensava muito em meninos) e as conversas esporádicas com o cachorro a faziam lembrar do que era realmente importante. Eles ainda trocavam seus "eu tem amo"s

O cachorro começou a perder o ânimo. Não por dentro, onde sempre se via empolgado, mas o corpo já não acompanhava a mesma alegria e euforia. Mesmo assim, esperava pelos momentos com sua dona, porém mais requieto... ela era tudo para ele. Ela, contudo, virou bela moça, com outras responsabilidades. Gostava do cachorro, mas tinha agora várias amigas e amigos, além de vários outros interesses. Suas conversas eram bem mais curtas, normalmente o cachorro que perguntava do dia dela e tinha respostas breves, quando não monossilábicas. O cachorro, por ainda ser cachorro, não tinha medo de dizer para ela que a amava. Ela retribuía, mas sem o mesmo brilho nos olhos. Ela só ficava novamente empolgada, quando era acompanhada de alguma amiga nas conversas com o cachorro - já consideradas ocasionais - e este, com toda a paciência, suportava ser ignorado por algumas vezes e se contentava com o carinho que ainda não faltava.

Chegou o tempo em que deitar era quase tudo o que conseguia fazer e a própria visão esvaía. Levantou como pode, andou até a árvore já velha e sentou, observando o seu último por-do-sol. Estava sozinho. Muita gente podia tomar essa situação como injusta ou ultrajante, mas gente ele não era, era cachorro. Só agradeceu ter vivido (e da melhor maneira que pode). Amou a vida inteira.