“E ali haverá uma grande estrada, um caminho
que será chamado Caminho de Santidade.
Os impuros não
passarão por ele; servirá apenas aos que são do Caminho; os insensatos não o
tomarão”
Isaías 35.8
Há
muito havia uma tribo. Gente remota vivendo em lugares inóspitos. Eram
montanhas rígidas, rudes e ralas. Expulsavam os desavisados, regurgitando-os
pelas encostas. Havia ali uma tribo. Gente selvagem vivendo em lugares secretos.
As montanhas zangadas proviam-lhes tudo o quanto era necessário, nada mais. Não
deixavam faltar. Não deixavam sobrar. Eram possessivas e protetoras. Havia ali
uma tribo. Gente infeliz vivendo em lugares indômitos. Viviam das montanhas e
delas eram escravos. Não lhes era permitido descer. Não sem a permissão das
montanhas.
Havia
um caminho, uma estrada. Um só trajeto os levaria para baixo, para longe do
olhar abrasivo das montanhas. Mas não ousavam mais traçá-lo. Estavam presos. E
as montanhas, caladas. Faziam-lhes oferendas e sacrifícios. Escolhiam os
melhores grãos e animais e consagravam-nos às Damas-Rocha – como se referiam a
elas. Rogavam-lhes pelo seu favor, por uma oportunidade de uma vida distante,
diferente. Mas as Damas calavam-se. Não lhes era ainda suficiente. Queriam sangue,
não grãos. Queriam a essência da vida humana, não dos animais montanheses. Apenas
aqueles que experimentassem a morte poderiam passar. E mortos não passam.
Antigamente,
outros tentaram a travessia. Cansados da opressão obsessiva das montanhas, marcharam
pelo Caminho. Nenhum alcançou o fim. As montanhas tomaram a todos.
Engoliram-nos, lambendo os beiços. Não deixaria seus escravos fugirem, não sem
tomar-lhes o sangue. Seus corpos foram empilhados à beira da estrada. Altares
mortos do fracasso humano. Só havia uma saída – e ela estava vigiada. Só havia
um caminho – e ele estava amaldiçoado.
As
Damas obrigavam seus escravos a um trabalho pesado. Martelavam, cavavam, suavam
e sangravam. A solução de sangue e suor regava a terra e deleitava às deusas.
Eram elixires de prazer, viciantes e tentadores. E as Damas queriam cada vez
mais. Davam-lhes exatamente o suficiente para manterem-nos vivos, fazendo-os
suar e sangrar. Eram possessivas e protetoras. Ninguém lhes tiraria seus
escravos. Ninguém desceria sem pagar com sangue.
Elas
faziam-nos procriarem desenfreadamente. Escolhiam as jovens mais belas para
copularem dezenas de vezes em rituais misteriosos, até serem encarregadas de
preciosa carga – mais sangue e suor. Assim que nasciam os pequenos escravos, eram
submetidas novamente aos ritos de procriação. Amarravam-nas em volta de
fogueiras e invocavam os homens da tribo para que as possuíssem. Quando perdiam
o vigor e a beleza, eram realocadas para outras funções, como o cuidado dos
pequenos ou da terra.
Havia
há muito uma tribo. Gente remota, selvagem e infeliz vivendo em lugares
inóspitos, secretos e indômitos. Viviam das montanhas e delas eram escravos.
Não lhes era permitido descer. Não sem a permissão das montanhas.
Um
dia, alguém subiu o Caminho. As Damas tentaram detê-lo, mas não conseguiram.
Seus passos eram frágeis e firmes, lentos e decididos. As Damas quiseram
engoli-lo, mas não tinham poder sobre ele. Elas fizeram de seu trajeto um
tormento, mas seus pés não se desviaram. Seu sangue era puro e as montanhas
nada podiam fazer a ele.
Escalou
a estrada e alcançou a tribo. Disse-lhes que vinha lhes mostrar o caminho para
longe das montanhas. Confusos, alguns diziam que se tratava de um emissário das
Damas, um demônio querendo enganá-los. Outros estavam tão oprimidos por suas
vidas que tinham medo de deixá-las. Quiseram expulsá-lo, apedrejá-lo, matá-lo.
Ele mantinha-se absorto em seus próprios pensamentos. O rugido da multidão
aproximava-se. Ele chorou. Ouviu o lamento da multidão, viu a opressão nos ombros
da gente, a rouquidão das vozes dos pequenos – e chorou. A multidão enfurecida
queria matá-lo, mas ela não tinha poder sobre ele. Abriu a boca e sua voz ecoou
pelo chão ralo. A gente emudeceu e ouviu seu canto. Dizia que vinha lhes
mostrar o caminho para longe das montanhas, que iria salvá-los. A multidão o
ouvia atentamente, mas apenas poucos creram.
O
pequeno grupo seguiu-o até a nascente do Caminho. Tremeram. “Não temam” – disse
ele. Mas não lhes era permitido descer. Não sem a permissão das montanhas. As
Damas queriam a essência da vida humana. Apenas aqueles que experimentassem a
morte poderiam passar. E mortos não passam. O cantor misterioso perfurou suas
próprias mãos e marcou-lhes a testa com seu sangue. O homem ensanguentado
iniciou a descida e os marcados o seguiram. As Damas tentaram detê-los, mas não
conseguiram. Seus passos eram frágeis e firmes, lentos e decididos. As Damas
quiseram engoli-los, mas não tinham poder sobre eles. Elas fizeram de seu
trajeto um tormento, mas seus pés não se desviaram. Eles estavam puros e as
montanhas nada podiam fazer a eles.