18.6.15

Estrada dos Separados




“E ali haverá uma grande estrada, um caminho que será chamado Caminho de Santidade.
Os impuros não passarão por ele; servirá apenas aos que são do Caminho; os insensatos não o tomarão”
Isaías 35.8

Há muito havia uma tribo. Gente remota vivendo em lugares inóspitos. Eram montanhas rígidas, rudes e ralas. Expulsavam os desavisados, regurgitando-os pelas encostas. Havia ali uma tribo. Gente selvagem vivendo em lugares secretos. As montanhas zangadas proviam-lhes tudo o quanto era necessário, nada mais. Não deixavam faltar. Não deixavam sobrar. Eram possessivas e protetoras. Havia ali uma tribo. Gente infeliz vivendo em lugares indômitos. Viviam das montanhas e delas eram escravos. Não lhes era permitido descer. Não sem a permissão das montanhas.
                
Havia um caminho, uma estrada. Um só trajeto os levaria para baixo, para longe do olhar abrasivo das montanhas. Mas não ousavam mais traçá-lo. Estavam presos. E as montanhas, caladas. Faziam-lhes oferendas e sacrifícios. Escolhiam os melhores grãos e animais e consagravam-nos às Damas-Rocha – como se referiam a elas. Rogavam-lhes pelo seu favor, por uma oportunidade de uma vida distante, diferente. Mas as Damas calavam-se. Não lhes era ainda suficiente. Queriam sangue, não grãos. Queriam a essência da vida humana, não dos animais montanheses. Apenas aqueles que experimentassem a morte poderiam passar. E mortos não passam.
                
Antigamente, outros tentaram a travessia. Cansados da opressão obsessiva das montanhas, marcharam pelo Caminho. Nenhum alcançou o fim. As montanhas tomaram a todos. Engoliram-nos, lambendo os beiços. Não deixaria seus escravos fugirem, não sem tomar-lhes o sangue. Seus corpos foram empilhados à beira da estrada. Altares mortos do fracasso humano. Só havia uma saída – e ela estava vigiada. Só havia um caminho – e ele estava amaldiçoado.
                
As Damas obrigavam seus escravos a um trabalho pesado. Martelavam, cavavam, suavam e sangravam. A solução de sangue e suor regava a terra e deleitava às deusas. Eram elixires de prazer, viciantes e tentadores. E as Damas queriam cada vez mais. Davam-lhes exatamente o suficiente para manterem-nos vivos, fazendo-os suar e sangrar. Eram possessivas e protetoras. Ninguém lhes tiraria seus escravos. Ninguém desceria sem pagar com sangue.
                
Elas faziam-nos procriarem desenfreadamente. Escolhiam as jovens mais belas para copularem dezenas de vezes em rituais misteriosos, até serem encarregadas de preciosa carga – mais sangue e suor. Assim que nasciam os pequenos escravos, eram submetidas novamente aos ritos de procriação. Amarravam-nas em volta de fogueiras e invocavam os homens da tribo para que as possuíssem. Quando perdiam o vigor e a beleza, eram realocadas para outras funções, como o cuidado dos pequenos ou da terra.
                
Havia há muito uma tribo. Gente remota, selvagem e infeliz vivendo em lugares inóspitos, secretos e indômitos. Viviam das montanhas e delas eram escravos. Não lhes era permitido descer. Não sem a permissão das montanhas.
                
Um dia, alguém subiu o Caminho. As Damas tentaram detê-lo, mas não conseguiram. Seus passos eram frágeis e firmes, lentos e decididos. As Damas quiseram engoli-lo, mas não tinham poder sobre ele. Elas fizeram de seu trajeto um tormento, mas seus pés não se desviaram. Seu sangue era puro e as montanhas nada podiam fazer a ele.
                
Escalou a estrada e alcançou a tribo. Disse-lhes que vinha lhes mostrar o caminho para longe das montanhas. Confusos, alguns diziam que se tratava de um emissário das Damas, um demônio querendo enganá-los. Outros estavam tão oprimidos por suas vidas que tinham medo de deixá-las. Quiseram expulsá-lo, apedrejá-lo, matá-lo. Ele mantinha-se absorto em seus próprios pensamentos. O rugido da multidão aproximava-se. Ele chorou. Ouviu o lamento da multidão, viu a opressão nos ombros da gente, a rouquidão das vozes dos pequenos – e chorou. A multidão enfurecida queria matá-lo, mas ela não tinha poder sobre ele. Abriu a boca e sua voz ecoou pelo chão ralo. A gente emudeceu e ouviu seu canto. Dizia que vinha lhes mostrar o caminho para longe das montanhas, que iria salvá-los. A multidão o ouvia atentamente, mas apenas poucos creram.
                
O pequeno grupo seguiu-o até a nascente do Caminho. Tremeram. “Não temam” – disse ele. Mas não lhes era permitido descer. Não sem a permissão das montanhas. As Damas queriam a essência da vida humana. Apenas aqueles que experimentassem a morte poderiam passar. E mortos não passam. O cantor misterioso perfurou suas próprias mãos e marcou-lhes a testa com seu sangue. O homem ensanguentado iniciou a descida e os marcados o seguiram. As Damas tentaram detê-los, mas não conseguiram. Seus passos eram frágeis e firmes, lentos e decididos. As Damas quiseram engoli-los, mas não tinham poder sobre eles. Elas fizeram de seu trajeto um tormento, mas seus pés não se desviaram. Eles estavam puros e as montanhas nada podiam fazer a eles.

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