26.12.09

Natal - parte 3

Passava o dedo na borda da xícara apreensivamente com movimentos não tão contínuos; o dedo parecia confuso, não sabia ao certo para que sentido se moveria, alternando várias vezes entre horário e anti-horário. Sempre achou que em momentos como esse, ouviria os passos do relógio, no entanto, conseguia escutar apenas os carros na rua e um pouco dos rumores da conversa da vizinha: provavelmente fofoca... nunca se viu uma vizinhança fofoqueira como essa, ninguém merece! Quando mudei-me para cá, achei que seria um canto sossegado, exatamente como precisava... como preciso... mas não completou-se direito uma semana e todos já sabiam da minha história! Deve ser aquela empregada... devia demiti-la, isso sim... se bem que ela limpa muito bem... e é Natal... bem, quem sabe depois; espero mais uns poucos meses e mando ela para rua! Prefiro alguém em que posso confiar minhas palavras do que confiar meus carpetes.
Enfim, o tão esperado som enche a sala com suas vibrações irritantes. Os dedos, que antes dançavam feito loucos desnorteados adquiriram instantânea sobriedade e avançaram ao telefone amarelo - este que se encontrava fora de seu devido lugar, do lado da xícara de chá.

- Alô... sim, sou eu, delegado, pode falar... sim... aham... mas, isso... não, claro, entendo, mas... isso... seu delegado, isso quer dizer alguma coisa... de verdade? Quer dizer, já estamos procurando faz tempo e, sei da sua capacidade, mas e se ela já tiver saído da cidade? Vocês vem com vários palpites, mas nenhuma pista concreta, você me entende? Daí a gente fica com uma expectativa, sonha, se preocupa, mas nunca dá em nada... - a voz dela começava a definhar, num choro trêmulo e tímido - e estou cansada... não quero mais me frustrar, ficar procurando e não achar...

Ela parou por um momento, tomando fôlego. O coitado do delegado no outro lado da linha não sabia o que falar. Ele também não acreditava mais. Normalmente, elas voltam dentro de duas semanas, mas já tornou-se questão de meses... nem sequer uma ligação... talvez o melhor seja não encontrá-la... uma filha assim... Trocaram suas últimas palavras, como se estivessem se despedindo num velório e desligaram.
Renata inspirou profundamente e soltou o ar aos poucos, enquanto abria os olhos e enxugava as tímidas lágrimas que ousaram aventurar-se. Pegou bolsa, celular, chave. Ao passar pela geladeira deparou-se com um convite de sua irmã. Alcançou-o com sua mão incrédula: "Talvez seja bom ter alguma coisa para fazer à noite".

***

Sabia que sua madrasta dissera alguma coisa, mas os fones de ouvido continuavam imóveis e a sua voz misturava-se com o barulho da música. A mistura até que não era ruim... a música também. Os olhos inertes reagiam apenas à mudança de cores na tevê. A mão também sofria com a inércia da troca constante de canais. Estava cheio, lotado. Não conseguia absorver mais nenhum imagem. Ou som.
Um ritmo persistente começou a invadir a música. Crescia cada vez mais, tornando-se estridente até ser reconhecido: atendeu o celular. Algumas monossílabas pronunciadas, uma olhadela no relógio e despedida. Buscou a mochila, que não estava longe, ajeitou o fone que caíra da orelha direita, murmurou algo para a madrasta que retrucou avidamente. A porta bateu - com ele para fora.

***

Assim que sentiu o chão, ouviu a música da cidade: pessoas caminhando de volta para casa, carros apressados carregados de presentes, o choro do homem às suas costas. Olhou para suas mãos dilaceradas com espanto. A face distorcida do homem em prantos o afastou daquele lugar. Não lembrava da última vez que seu coração bateu tantas vezes com tamanha intensidade; ele se arremessava contra seu peito, numa desesperada medida para fugir e sentir ele mesmo a realidade que o cercava. Foi somente depois de vários passos que percebeu estar sem os fones de ouvido. Agitou-se, desconsolado, imaginando se o fone ainda estaria lá, revolvendo em sua mente os diversos fins que poderia ter tomado, enquanto suas pernas batalhavam para decidir se iam em busca dos fones ou não. As ideias iam tomando forma e se concretizando à medida que o tempo passava. Seu pé ainda não havia cessado de bater ansiosamente no chão, apressando a mente a tomar uma decisão. Mas, enfim, uma grande nuvem dissipou-se, permitindo-lhe finalmente decifrar os milhares de pensamentos que lhe ocorriam constantemente. Conseguiu ouvir a si mesmo como nunca antes conseguira.
Após mais alguns passos, seus olhos depararam-se com uma menina de cabelos negros, encostada no muro de um prédio que dava num beco. Seus olhos azuis contrastavam com o cabelo escuro e a pele clara. Suas roupas estavam amassadas e apresentavam insegurança. Havia uma luz diferente naqueles olhos, como se o céu inteiro coubesse neles. Sem querer, quis abraçá-la.
Devia ter ficado muito tempo observando-a, porque ela reagiu de maneira crespa, como se Gustavo a tivesse invadido de alguma forma. Desculpou-se e obteve um tudo bem como resposta. Nunca soube dizer mais tarde exatamente o porquê, se foi a vontade anterior de segurá-la ou o recente reencontro com o mundo, mas fez o que não imaginaria:

- Você parece chateada. Ela redirecionou o olhar, curiosa.
- Não é nada. Passaram-se alguns segundos e se arrependeu da resposta.
- Então... vou indo...
- Quer dizer... você sabe quando... fez uma breve pausa, mas respondeu decididamente. Estou perdida. Ele pareceu não entender, mas procurou em seus pensamentos qualquer resposta que pudesse ajudá-la.
- Eu conheço esses arredores, posso...
- Não - interrompeu a menina - não nesse sentido. Seu olhar nunca o encarava e suas mãos estavam inquietas. Eu fiz algumas escolhas erradas... minha vida não era perfeita, nem um pouco... mas ficou muito pior, entende? Eu... eu esperava ser tudo diferente, ter encontrado o que queria, eu achava que ia ser feliz... mas as coisas... elas deram muito errado... e já não posso voltar atrás... eu não sei mais se consigo dormir em paz. O menino poderia esperar qualquer coisa, menos tamanho desabafo. Ele mesmo sentiu impulso para que contasse as suas próprias frustrações, mas algo o impediu.
- Está escurecendo. Acho melhor sairmos daqui, é meio perigoso. Ela assentiu. Passaram alguns segundos sem que ninguém falasse nada. A cada segundo o menino se obrigava mais a soltar as primeiras palavras. Ela estava contente apenas em estar acompanhada. Pelo menos sentia grande alívio; começou a soltar os grilhões.
- Eu... eu... eu moro com a minha madrasta. Não lembro da minha mãe e meu pai morreu já faz um tempo. A paz que começara a tomar espaço no interior da jovem estremeceu ao ouvir "pai". Ela é OK.
- Não vejo meus pais há dois meses. Quer dizer... deixa pra lá. Seu rosto permaneceu admirando os calçados.
- Você... não quer vê-los?
- Não... eu... quero, mas... é complicado.... acabei de ver meu pai, na verdade. Gustavo, de alguma forma, sentiu que não deveria perguntar mais fundo. Mudou de assunto, e assim ficaram por um tempo, se alimentando do mundo. Até que, já escuro, depararam-se com uma construção bem iluminada e movimentada. Chegaram mais perto, mas ainda não conseguiram decifrar o que era aquilo ou o que aconteceria, viam apenas que as pessoas conversavam e sentavam, aguardando uma apresentação. A proteção das luzes os atraiu. Sentaram ao fundo, fugindo de quaisquer olhares. Estavam descansando um pouco de suas vidas.

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