30.5.11

Meio-homem

Sem começo ou fim. Era assim que ele via sua vida, envolto das mais variadas histórias, de tantas experiências resolvidas que as estradas nunca acabavam e do nada partiam. Se alimentava delas quase humanamente e guardava cada uma como pedras preciosas enfiadas numa caixa, dentro de um baú, na última estante de uma prateleira no fim da sala. No seu tempo livre, quando não tinha que organizar e reorganizar os livros, mexia com sua coleção, porque gostava mesmo era de misturar. Uma personagem de um encontrava um reino de outro que sofria de uma terrível demanda de um terceiro, resolvida pelo elemento salvador não encontrado em nenhum deles. De vez em quando ainda esboçava seus próprios homens e mulheres - nunca herois, para não terem tanta responsabilidade assim -, e arranjava encontros casuais, como graça de uma coisa diferente que nem sequer mudou. Determinada vez, pensou num homem largo e baixo, de rosto feio e cabelos ruivos; vestia panos como os outros, mas verdes, como só de alguns; deu-lhe nome e cor dos olhos; vinha de uma família normal, com exceção da mãe, que perdera a sanidade, obrigando-o desde pouca idade a se emaranhar por entre a feira, na agilidade de um pequeno necessitado - e nunca foi pego. Um de seus irmãos fugira, mas ele permaneceu, por medo ou pela vontade de ver a mãe curada - sabe aquela louca esperança que vem e vai ao nada? Sua participação no enredo se resumia em esbarrar por um breve momento na principal personagem, sem nem sequer fazê-la desviar o olhar.
Perdia-se por tanto tempo naquela biblioteca que, se alguém o encontrasse, talvez não o considerasse humano. De fato, seus feitos fogem do normal; desenvolveu outros tipos de habilidade para que sua sobrevivência fosse garantida, entre elas, a principal era a de viver entre tantas histórias sem perder o rumo da que vivia. Qualquer outro em seu lugar sairia a galope por dentro da cidade matar um dragão ou facilmente se penduraria com corda no teto diante da escuridão dos tempos. Mas ele não. Ele conseguia discernir o escuro do claro (mesmo que ficasse confuso em certos tons), comia e digeria livros, sabendo quais eram proteínas, carboidratos, cálcio e ferro. Sua sede pelas águas daqueles mundos além das letras era insaciável, intensa, indistinguível; não ousava de lá sair... sabia onde estava seu tesouro - se pelo menos pudéssemos nisso ser como ele.
No mais, observava alguns aventureiros passarem pelas estantes, torcendo para que não pegassem seus livros prediletos, mas ao mesmo tempo os querendo compartilhar - mas não podia falar-lhes, não conhecia as letras e sabia das regras: a biblioteca exige silêncio para a alma, silêncio sagrado. Ainda mais, nunca esquecera de suas promessas, das condições que o possibilitaram atravessar seu mundo, caindo neste outro. Não queremos falar de sua antiga ocupação - não podia ser melhor que a atual -, mas entendia que não podia mais permanecer lá. Foi-lhe dada chance de redenção, mas não em seu próprio mundo. Seus crimes não permitiam-lhe compartilhar da pureza de sua terra, no entanto não o impediam de conviver conosco, desde que confinado. Por sabedoria de seus reis fora enviado a um lugar quase obsoleto, onde poderia se esconder sem prejudicar os humanos-outros (linguagem deles para se referirem a nós), estabelecendo um contato mínimo. Desde então, morava entre os livros, sem saber um palavra sequer, porém enchia as páginas com histórias da terra natal, com suas criaturas e possibilidades. Pouco depois que chegara, quase todas as capas já carregavam seus contos. E nunca os conheceremos.

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