25.12.11

O Experimento - Natal

O bom velho levantou penosa e lentamente da cadeira. Faz tempo que já não tinha aquela força e há mais tempo ainda as dores no joelho incomodam. No movimento, derramou um pouco do café que trazia, queimando os dedos. Esboçou uma praga, mas se conteve. Afinal, era Natal.
Chegou enfim à porta e abriu ao visitante:
- O que deseja?
- É você?
- Eu? Eu quem?
- Aquele de que todos falam.
- Não... - essa pergunta nunca deixou de deixá-lo fora de si, no entanto, pensou no visitante e na sua provável confusão, respirou fundo e mudou a resposta - Sim.
O homem peculiar que esperava em meio à neve mostrou indecisão, ou descrença ou qualquer coisa do tipo. Sei que ficou calado por quase um minuto, como se buscasse entender a resposta dada, com medo de fazer nova pergunta
- Posso entrar?
- Claro, desculpe minha falta de educação, você deve estar congelando. Venha, sente-se aqui, ou em qualquer lugar que lhe agrade. Volto num instante com chá. Você prefere limão ou canela? Eu particularmente prefiro o segundo. Ou quer café? Certo, apenas água. Volto num instante.
O homem vestido de preto aproveitou para observar a sala. Era pequena, com móveis antigos e rústicos, como de costume naquela região. Na lareira crepitava um fogo aconchegante, de onde também vinha a maior parte da iluminação do espaço. Duas poltronas repousavam, uma de frente para a outra, com uma mesinha redonda de mogno ao centro. Havia apenas uma janela, não muito grande, de onde podia-se ver um poste iluminado lá fora. Um porta retrato descansava em cima da lareira.
- É casado? Perguntou quando o velho voltou com sua água.
- Sim... e não, novamente. Ela morreu há dois anos.
O homem sentou-se numa das poltronas e deixou o chapéu preto sobre a mesa. O velho moveu-se em sua direção, oferecendo-lhe o copo.
- Então, o que posso fazer por você?
- Faço parte de um grupo de pesquisa. Estamos estudando os humanos. Nosso estudo é bem extenso. Fazemos testes comportamentais para melhor entendê-los, mas para isso é preciso levar em conta uma grande quantidade de material histórico prévio ao objeto. Além da história, é preciso conhecer as crenças individuais de cada objeto - estudo interessante - ou mesmo as não-crenças. Finalmente, também percebemos que os objetos são afetados por um conjunto de padrões e crenças solidificadas no emaranhado de ideias que carrega uma sociedade. E cada sociedade tem as suas. Contudo, como coordenador no departamento de estudos humanos do ocidente, não pude deixar de perceber diversas similaridades entre os mais variados círculos sociais. Ou seja, existem crenças e padrões recorrentes em muitas das sociedades que se encontram a oeste da Rússia. Um deles, é o seu caso - o bom velhinho ajeitou-se na poltrona e tinha ar de quem ainda nem começara a entender -. Não é de fato surpreendente. Afinal, existe uma espécie de conexão geral entre todos os países do globo, especialmente entre aqueles que mantem certos pilares filosóficos em comum, como é o caso da maioria dos povos ocidentais. Há também uma densa carga histórica que ajuda a explicar por que o índice de congruência cultural - chamamos de ICC - entre os povos de minha jurisdição é relativamente alto. Ou seja, não é comum que eu tenha que verificar fatos como este em pessoa. Porém, é a natureza do fato que me desperta a curiosidade. Veja bem, há diversos tipos de comemoração neste dia festivo em meio aos povos em questão, mas quase todos de alguma forma acabam por mencionar você, positiva ou negativamente. Pois bem, exigi uma pesquisa mais detalhada sobre sua pessoa e encontramos um vasto material, mas nem tudo era coerente. Decerto sabemos que existem informações enganosas ou incompletas, ou até mesmo ingenuamente compostas, no entanto havia uma parte mínima do acervo que contava uma versão completamente diferente do material mais recorrente. Tamanha disparidade chamou minha atenção e resolvi verificar alguns dados por mim mesmo. Quando relacionei as informações que tínhamos com os dados biográficos mais verossímeis, cheguei a - aí sim - surpreendente conclusão de que a grande maioria do material estaria equivocada. Posso imaginar que situações assim ocorram quando há necessidade de fazer humanos acreditarem em algo diferente da realidade para que haja um bem comum. Mas neste caso, é exatamente o contrário. A história que até agora tenho constatado ser verdadeira - e que pouco ou quase nada circula - é justamente aquela que, pelos cálculos, traria um maior desenvolvimento à sua raça. Portanto, julguei ser necessário que viesse em pessoa esclarecer tamanhas dúvidas. Você poderia me explicar?
Foi a vez do velho ficar em silêncio por quase um minuto completo. Depois, soltou uma longa e gutural risada, seguida de uma sessão de tosse.
- Você é uma das coisas mais interessantes que me aconteceram, com certeza! Se minha esposa estivesse aqui ela certamente já haveria mandado-o para fora, alegando que não suportaria tantas asneiras. Mas, sendo quem sou, não vejo razão para não acreditar no que você me disse. Além disso, tem algo estranho e diferente nos seus olhos. Quase consigo sentir suas dúvidas, sua honestidade. Eu só lamento que... eu temo que não saberei responder suas perguntas.
- Quem sabe se eu me fizesse mais claro. Você participa de alguma forma do fornecimento dos presentes?
- Não, não, céus! Ha, ha, ha.
- Mas e na confecção dos ideias que circundam as festividades?
- Bem, veja... não é raro acontecer de alguém um dia ter uma ideia boa e também uma boa intenção, mas outra pessoa, que não está comprometida com as mesmas boas intenções, usa sua ideia de forma leviana e às vezes maquiavélica. Essa é mais ou menos a minha história. Ou a história do Natal.
- Entendo. Mas, por favor, explique-me. Qual era a sua ideia?
- Eu simplesmente sonhei um dia ver todas as pessoas se importando mais com os outros do que consigo mesmas. Para exemplificar isso, comecei a dar presentes feitos por mim, minha esposa e meus filhos a quase todas as pessoas que conhecíamos. Mas os presentes não tem nenhum significado em si mesmos e... - abaixou a cabeça, abatido - dou-te certeza absoluta que nada tenho a ver com o que acontece hoje... no mundo.
- Estou muito agradecido pelas respostas. Tenho que ir imediatamente reportar e documentar o que ouvi. Obrigado pela água. O homem peculiar ia se retirando em direção à porta, quando foi interrompido pela voz do velhinho:
- Um dia ainda vai acontecer, sabe!
- Desculpe, acontecer o quê?
- Todas as pessoas se importarem mais com os outros do que consigo mesmas... Sei que não sou eu que farei com que isso aconteça, mas ainda assim acredito que um dia este meu sonho se realize, mesmo que não esteja mas vivo para vê-lo.
-Entendo... Com todas as pesquisas que fizemos até agora, posso afirmar que a esperança é o principal combustível do humano... como é claramente no seu caso. Para o bem da sua raça, também tenho a esperança que sua visão se concretize. Obrigado, Nicolau.

28.11.11

Barco Eterno

Quase sem velas, paira sob as águas
Deslizando, pesado e lento.
O capitão, absorto em solidão e fracasso,
Iça, puxa, cansa e geme.
Corre louco em redor, bradando,
De punhos cerrados às vagas estrelas,
Quase sem respostas ou nitidez ficam
Longe e inalteradas, quase indiferentes.

Mas o homem-do-mar sabe
Que delas vêm a vontade sobre o medo
Na esperança última da luz.
Qualquer uma! Morte ou vida!
Porém...
Nada...
Somente um pálido olhar
De quem está com preguiça.

E vai ele, marujo condenado,
Dobrando, passando, tremendo e gritando.
E nem mesmo obtém resposta
De seu único companheiro, frio e inflexível.
Não dobra nem à direita ou à esquerda,
Num mesmo ritmo semi-morto,
Lento demais para revirar a mente de um são,
E rápido o suficiente para dar passo
A uma nauseante inquietação
De quem nunca para,
Nem mesmo para morrer.

Colocado ali um dia
Com a tal benção ou maldição
De nunca afundar - por inteiro.
De nunca perder seu timoneiro,
E eternamente vagar pelo mar.
Visão radiante... para um iniciante...
Que distorce na primeira tormenta.
E chocando com pedras e pedras,
Atrai o desejo último - quiça inevitável
De parar, enfim, parar...

[escrito em Florença]

16.8.11

de dentro... para dentro

sabe, meu mundo, como os pés movem
e não raramente aparecem errados?
a gente fala coisas tortas
e nelas crê,
sabe?

cada giro meu
torna ao mesmo lugar
e insisto em girar.

os dias vazios transbordam as semanas,
numa vontade niilista de viver só
com choros que não caem
sabendo do erro.
sabendo...

o desejo é de ter perto
na distância de um sorriso
uma presença de amigo.

enquanto o pensamento vem mutilado
das tormentas todas de dentro
passando aperto no peito
para morrer, em maré,
de saber,

eu monto pilhas e pilhas
de trapos esparsos
sem, espero, tombar

e não ofereço. não! não ofereço!
assaltado por mim, guardo,
e o peso empurra
para as águas,
fundas

olha, meu mundo,
e percebe o erro?
insisto no terceto...

mesmo aqui as palavras se agrilhoam
viciadas no torpor do pensamento
que, machucado, ilude o resto
a fim de ferir mais
fundo

não posso dizer somente
aquele medo latente?
não sei ser só...

28.7.11

Ela vai casar

Sempre que passava a mão nas flores do jardim se sentia assim, como elas. Seu vestido florido ajudava, cabelos morenos balançando. Uma mecha escorria retorcida pelos olhos, apontando ao nariz gracioso. Quando a porta abriu, abriu também um sorriso. Tanta história passava por aquele dia, os sentidos se misturavam todos de tão intensos e densos. Aquele homem que abria caminho pelo passeio a mudara desde o primeiro encontro.
Num começo com muitos doces e poucos amargos, trocavam palavras de afeição, como amantes mesmo fariam. Tempo juntos era sempre lucro e os dois se deliciavam com os minutos. Se o céu estava limpo, era uma grande oportunidade de saírem ao mundo, com olhos curiosos e sedentos. Os momentos acompanhados marcavam a história de cada. Provavelmente veriam os parques, as árvores e os pássaros alguma vez na vida, contudo o coração torna as coisas tão mais relevantes quando as vemos ao lado de quem se ama. Se o céu escurecia, era a oportunidade perfeita de cerrarem a porta de casa, procurando jogos e brincadeiras infantis. Agradeciam a chuva. Nem sequer o tempo que passavam separados era desperdiçado. Seus afazeres todos ganhavam especial tempero pela sensação extasiante de um sei-lá-o-quê incontido que banhava seus dias, seus sorrisos e choros.
Sim, houve muitos choros. Até certo ponto, era coisa natural, porém foi piorando e as cosias acinzentaram de vez na primeira crise. Era doença. Tinha também imaturidade. O que lhe ardia era como a imensa maioria das vezes, ele estava certo de fato, e ainda mais, quando estava errado, ela tinha de se comportar como se fosse o contrário. Não suportava! Era como trezentas mil calúnias à sua existência, um presente atestado de invalidez moral. Quando as doenças, passaram, a imaturidade continuou. As brigas eram tão constantes quanto os abraços. Os dois cresceram, os dramas também. Fizeram tantas viagens, para dentro ou para fora que ao que tudo indica não conseguiriam lembrar de todas. Mas, não importa o estado em que iam, continuavam selando seus calendários com seus bons momentos.
Descobriram que era mais ou menos assim. Enquanto os poetas e escritores displicentes escreviam sobre o amor, eles o vivam - todos os seus lados. Havia dias - e como havia - que não se olhavam. A raiva cerceava os quartos, num pulsante alerta a todos que andavam pela casa. Ele, sempre mais maduro, era responsável pela maioria das iniciativas. E ela sofria com isso. Tentava sempre estar mais preparada, melhor para ele, mas aos seus olhos falhava incessantemente. Assim, frustava-se e recolhia-se como animal ameaçado, sentidos atentos à qualquer demonstração que possa ser interpretada como agressiva. Odiavam seus erros e viam-nos projetados no outro. No entanto, com esperança persistente, reconciliavam-se. Buscavam amar - e suportar os defeitos.
Tudo chegou a este momento. Os cabelos esbranquiçados dele estavam cada vez mais ralos. E em questão de dias, entregaria ela aos cuidados de outro homem. Ela foi ao seu encontro, pronta para sua última caminhada com ele... como solteira:
- Bom dia, pai. Vamos?

20.6.11

Sinfonia do céu

Em tons claros passa o dia,
Retorcendo o laranja em azul,
Enfeitado de pingentes brancos,
Rastros dos anjos imaginários,
Caminhos de qualquer fantasia,
Que deslizam em bandos,
Como dirigíveis intocáveis.

Ao pé um verde ralo, pouco e sincero
Suporta o astro-rei na escalada solitária
(a qual nenhum homem jamais fará igual),
E dando também certeza
de que é
real
e também realeza.
Do pó vemos acima,
E do pó acreditamos.

Mais um pouco, o azul,
Na tristeza de um amor perdido,
Roxeia o laranja,
Nos últimos abraços
De uma despedida carregada,
Uma tristeza sem carga, nua e inevitável,
Cuja dor vem consolar
Pelos trovadores do ar,
Aqueles tantos que de anos caminham,
Chegando às vezes mortos...
Mas não sua música,
Interpretada sempre
Pela dama
Branca e tímida,
Que por ora, de vestido volumoso
Mostra tanto, tanto
Que nela nadamos

Não vejo harmonia,
Entre a diária sinfonia do céu
E meu ser calado,
Que enfraquece voz ao lado,
Por desgosto de ser tão destoante
Parece que o ritmo, no fim, é diferente
E deve ela mesma seguir à frente
Enquanto prendo eu no meu atraso

17.6.11

Daquelas injustiças

Num campo de sossego e frescor de orvalho
Eu na pressa de um oblíquo caminhar
Lembro do mover calmo das ondas do mar
Das brancas leves nuvens ao passo que passo

Vejo a nítida manifestação de vida
Da flor-sangue que convida à admiração
Solitária e tão bonita em minha mão
Que o vento, indignado, mergulha de cima

Arranca em raiva do campo e de mim as pétalas
De magnificência vermelha de flor
E o céu quase chora como não fez em décadas

Meu peito é obrigado a carregar esperança
Para um mundo onde não se cabe ou aceita
Contando piada quando alguém não alcança

30.5.11

Meio-homem

Sem começo ou fim. Era assim que ele via sua vida, envolto das mais variadas histórias, de tantas experiências resolvidas que as estradas nunca acabavam e do nada partiam. Se alimentava delas quase humanamente e guardava cada uma como pedras preciosas enfiadas numa caixa, dentro de um baú, na última estante de uma prateleira no fim da sala. No seu tempo livre, quando não tinha que organizar e reorganizar os livros, mexia com sua coleção, porque gostava mesmo era de misturar. Uma personagem de um encontrava um reino de outro que sofria de uma terrível demanda de um terceiro, resolvida pelo elemento salvador não encontrado em nenhum deles. De vez em quando ainda esboçava seus próprios homens e mulheres - nunca herois, para não terem tanta responsabilidade assim -, e arranjava encontros casuais, como graça de uma coisa diferente que nem sequer mudou. Determinada vez, pensou num homem largo e baixo, de rosto feio e cabelos ruivos; vestia panos como os outros, mas verdes, como só de alguns; deu-lhe nome e cor dos olhos; vinha de uma família normal, com exceção da mãe, que perdera a sanidade, obrigando-o desde pouca idade a se emaranhar por entre a feira, na agilidade de um pequeno necessitado - e nunca foi pego. Um de seus irmãos fugira, mas ele permaneceu, por medo ou pela vontade de ver a mãe curada - sabe aquela louca esperança que vem e vai ao nada? Sua participação no enredo se resumia em esbarrar por um breve momento na principal personagem, sem nem sequer fazê-la desviar o olhar.
Perdia-se por tanto tempo naquela biblioteca que, se alguém o encontrasse, talvez não o considerasse humano. De fato, seus feitos fogem do normal; desenvolveu outros tipos de habilidade para que sua sobrevivência fosse garantida, entre elas, a principal era a de viver entre tantas histórias sem perder o rumo da que vivia. Qualquer outro em seu lugar sairia a galope por dentro da cidade matar um dragão ou facilmente se penduraria com corda no teto diante da escuridão dos tempos. Mas ele não. Ele conseguia discernir o escuro do claro (mesmo que ficasse confuso em certos tons), comia e digeria livros, sabendo quais eram proteínas, carboidratos, cálcio e ferro. Sua sede pelas águas daqueles mundos além das letras era insaciável, intensa, indistinguível; não ousava de lá sair... sabia onde estava seu tesouro - se pelo menos pudéssemos nisso ser como ele.
No mais, observava alguns aventureiros passarem pelas estantes, torcendo para que não pegassem seus livros prediletos, mas ao mesmo tempo os querendo compartilhar - mas não podia falar-lhes, não conhecia as letras e sabia das regras: a biblioteca exige silêncio para a alma, silêncio sagrado. Ainda mais, nunca esquecera de suas promessas, das condições que o possibilitaram atravessar seu mundo, caindo neste outro. Não queremos falar de sua antiga ocupação - não podia ser melhor que a atual -, mas entendia que não podia mais permanecer lá. Foi-lhe dada chance de redenção, mas não em seu próprio mundo. Seus crimes não permitiam-lhe compartilhar da pureza de sua terra, no entanto não o impediam de conviver conosco, desde que confinado. Por sabedoria de seus reis fora enviado a um lugar quase obsoleto, onde poderia se esconder sem prejudicar os humanos-outros (linguagem deles para se referirem a nós), estabelecendo um contato mínimo. Desde então, morava entre os livros, sem saber um palavra sequer, porém enchia as páginas com histórias da terra natal, com suas criaturas e possibilidades. Pouco depois que chegara, quase todas as capas já carregavam seus contos. E nunca os conheceremos.

17.5.11

debaixo do pano

os homens gritam por socorro
querendo enfim saber o que se faz
quando um sonho se apaga?

os rios secos correm vazios
queima ainda a chama abafada
cresce o broto sem raiz
tudo acontece como que nada
colhem-se de campos sem sementes
um quadro pinta sem cor
o homem sem desculpas
se humilha ao falar de amor
pede por favor pra dor que sente
que esconde nos dias frios
como se não desse a perceber
que água nenhuma há no rio
vem trazendo do jeito que
sabe o gesto louco de quem
não se importa com um prego
na mão, na esperança de ninguém
ver.

5.5.11

O homem que viajava no tempo

E se houvéssemos inventado a máquina do tempo? Ou ainda mais... e se o homem, um dia, fosse abençoado com o dom da manipulação temporal? Como andaríamos em humanidade? Teríamos a tão desejada possibilidade de corrigir erros passados, mas lógico, demandaria algum tempo até que chegássemos às melhores estratégias. Primeiro iríamos voltar, voltar, ir, voltar e ir, só pela diversão e curiosidade, até que percebêssemos não saber mais onde estamos, que o tempo perdeu sentido e não sei mais se é o meu tempo, ou de um outro eu que também está fora no momento. Depois do desespero inicial e a busca desenfreada pela sua casa (que não mais teria sentido de lugar, mas de sua época natal), encontraríamos uns tantos viajantes em busca das mesmas coisas. Nos denominaríamos pelo ano que os poderes chegaram (considerando que atingiram toda a linha do tempo igualmente) e nos ajuntaríamos em bandos, procurando fazer os cálculos para voltar aos nossos próprios segundos. Afinal, saímos num momento, mas não significa que os momentos deixaram de passar. Poderíamos saber o dia e ano em que deixamos nossa casa, mas poucos saberiam as exatas horas, minutos e segundos. Ainda mais poucos saberiam as exatas horas, minutos e segundos que chegaram no seu destino, restando sãos apenas aqueles que, por prudência ou desânimo escolheram nunca viajar.
Com algum tempo, nos conformaríamos, passando a viver no presente como se fosse seu próprio tempo. Aprenderíamos a usar as habilidades em casos extremos: o número de mortes cairia drasticamente, todos evitando a foice nos últimos suspiros, mas descobriríamos que nada nos impediria de morrer. O fato de poder fugir de quase tudo não nos possibilita fugir de nós mesmos, e se nossos corpo sofre, sofrerá até o fim.
Numa tentativa de felicidade - novamente pela fuga - as viagens começariam a se dar uma vez que nós fizéssemos escolhas erradas, que levam à dor. E pronto, o remédio do instante girou o mundo rapidamente. Sentiríamos dor, voltaríamos atrás, prevenir o acontecido. Até que nos deparássemos com muito menos situações de prazer. Por alguma razão, a proporção de coisas boas depende das más, ou pelo menos que se enfrente determinadas situações. Uma nova estratégia correu o mundo: uma vez que nossos planos falhassem, voltaríamos e tentaríamos de outra forma, até que obtivéssemos bom resultados. Nossa alegria residiria na conquista desses pequenos momentos.
A frequência das viagens aumentaria assustadoramente, quase como epidemia, o que correria pelos jornais de todos os tempos (que tem jornais). Haveria grande decepção quando, visto que a circulação temporal era intensa pela filosofia corrente de viagens no tempo, cada viagem traria uma situação nova, mesmo que voltando minutos atrás. Numa briga de casais, um profere um dito maldito e decide voltar para refazer, passando dois segundos sozinha, a outra volta para evitar a "talvez-fuga" do amado, que por sua vez encontraria sua querida de não sei que tempo, com não sei que mentalidade, que talvez já tenha passado por umas tantas situações como da que veio o um, e... vê-se o imbróglio.
Haveria também aqueles que aproveitariam as oportunidades para roubar e fugir, na expectativa de nunca serem achados. Mas aqueles do futuro, percebendo padrões e repetições, conseguiram desenvolver técnicas para seguir os traços de um, espalhando-as pelos mais diversos tempos possíveis, a fim de procurar seus piores criminosos. Haveria também muita fome. Com a inconstância do homem, as plantações deixariam de ser cuidadas, sem grande reposição humana, o que faria com que presidentes do mundo inteiro voltassem no tempo para evitar lidar com tamanhas pressões.
O tempo ia ou não passando, e as pessoas não conseguiriam nutrir relacionamentos duradouros, sempre com a sensação de não serem seus. Não se acharia mais o amor ou o interesse pelo próximo. Seria tudo em vão e todos pereceriam, pouco a pouco, segundo a segundo, sem poder controlar a si mesmos. Até que, de fome, acidentes, crimes, idade, saúde (e suicídios), tantos morreriam, que não se poderia contar os corpos. E enfim, restariam aqueles poucos fieis, que no início decidiram não se entregar à loucura do mundo, ou se arrependeram a tempo, permanecendo e se aperfeiçoando. E ensinariam a mesma coisa a seus descendentes, até que chegasse um tempo em que, pelo prudente desuso, ninguém mais saberia possuir poder algum.


E nada impediria deste ser o tempo.

20.4.11

O mito das portas

Acordei na penumbra e refiz minha rotina. Os dedos hábeis vagueavam na escuridão infinita, grossa e densa como uma nuvem de fumaça. Ouvia-se sempre os mesmos barulhos, de uns tantos semi-mortos (para os pessimistas) que iniciavam seus dias. Não sei o que faziam, nunca os via, sabia que estavam lá, no entanto. Criou-se esse hábito naturalmente, de não se interessar pelos afazeres de outros, provavelmente há alguns anos atrás, tanto que tirando o não-sei-quem de quem nasci, nunca entrei em contato direto com algum outro.

Algumas vezes, no entanto, uma criatura aparecia, tocando um som metálico e dizendo coisas, coisas, coisas:
- O novo nascer vem de dentro! Só de si! Só de si!
E de novo:
- E a vida é para si! De nada mais precisa!
Mas não respondia. Receava que roubasse minhas palavras. Não tinha muitas delas e esse homem passava de quando em quando recitando coisas todas novas. Talvez estivesse roubando-as de outros enquanto os insitava a falar. Afinal, eu não conseguia dizer coisas maiores, ele sempre diria algo de maior sentido, apagando os meus. E o que são palavras sem sentido?

Estive pensando, e talvez só não esquecemos que existem palavras por causa dos incessantes murmúrios que alguns de nós produzem e enchem por alguns instantes o ar – que logo abafa o som… Talvez não sejam murmúrios, mas palavras todas conexas e seguidas – imagine só tamanha beleza! – que o ar desfaz em poucos segundos. Quem sabe estão tentando contato! Mas nós, aqui, nem mexemos músculo em rumo algum e não se encontra ninguém porque ninguém ousa se mover… Um encontro! Como será? Como serão os outros? Iguais a mim? Poderão dizer-me como sou? Tenho apenas o tato nu e áspero de meu corpo, mas nunca consegui decifrar as formas que me foram dadas… Talvez encostando em outro possa ter uma ideia, uma melhor imagem. Quero conhecer minha formas! E assim, hei. Hoje largo meu instrumento, meu local e vou em busco de murmúrios! Deixaria meu sustento, meus pertences e de bom grado minhas obrigações e preocupações! Já não posso me encher mais dessas coisas vis! Eu vou… vou agora, isso, agora… eu vou… eu… [silêncio] mas quando sair, será que volto? Meus instrumentos nada sabem dizer, não haverá barulho que me guie de volta para cá… E se os tais murmúrios forem vãos? Sons debéis de bestas ferozes procurando alimento ou máquinas estranhas e abandonadas. Em nada adiantaria deixar tudo. Talvez eu mesmo me transforme em besta fútil à procura de alimento enquanto digo bobagens.

Demorei mais uns três sonos para me decidir. Uma vez que considerei a possibilidade de saber melhor de mim, sentir qualquer outro, as rotinas diárias começavam a me incomodar, a deixar de ser as mesmas. Até que um dia a perturbação tomou tamanha conta de mim que não podia mais concentrar as mãos, tremiam e em pouco tempo era eu inútil. Larguei e dei os primeiros passos. Pensei no que ficava para trás. Pensei-o mais afundo e andei mais ainda. Em pouco tempo já me sentia livre – deve ser a melhor sensação que existe, andar à toa. Ouvi, então, os murmúrios, que me direcionaram. Na mudança de direção, meu pé prendeu em algo e me senti pesado, indefeso, tonto e um vento correu pelo meu rosto, logo antes de sentir um impacto como nunca antes me percorrer de cima a baixo. Pensei de pronto como estava melhor parado, se nunca tivesse me mexido, não haveria sentido tanta dor – nem lembro a última vez que doí. Senti o chão assim pela primeira vez. Levantei-me e considerei que dificilmente acharia meu velho lugar novamente. Não tinha tantas opções: ou ficava, ou ia. Não só em movimento, mas fiquei em mim mesmo por todo o meu tempo, queria ir, ver se alguma coisa valia mais a pena.

O som nebuloso ecoava ainda à distância (ou pelo menos parecia, poderia estar diante de mim, mas o escuro o encobria). Era o único ponto em que poderia reclinar, sem outra direção, alguma qualquer pista. Sei que via-me andando, mesmo não mais acreditando na minha fé. Sei lá como funcionam essas coisas!

Após uns tantos passos que nem sei quantos, percebi algo curioso, um algo que se destacava do negro lugar. Um ponto tímido que atravessava a cortina de escuridão em sua forma toda disforme, como que dançando a um som até então desconhecido. Era tão diferente que gastei não sei quantas horas observando (podia ser nem uma sequer), até demorei a me dar conta que o som partia da mesma direção. Foi como se um rio todo quente descesse pelo meu corpo, ativando tudo que tinha em mim… meu ânimo se restaurou, sentia mesmo que caminhava rumo a algo, não mais uma possibilidade remota de um nada. Foram mais algumas horas e o ponto crescera um tanto, mas algo mais curioso aconteceu. Numa das pausas intermitentes daquele gemido inexpremível que seguia, ouvi um outro som tão curioso quanto logo ao lado. Um som que arranhava o ar, com estalos constantes, mas em diferentes intensidades. Desviei-me um pouco da minha rota (certificando que não perdia de vista aquele ponto). Andei um quê, até que senti algo embaixo roçar num outro corpo que se afastou instintivamente, parando aquele som arranhado.

Silêncio.

Aí percebi como seria genial criar um meio de testar o ambiente, qualquer som que pudesse ser reconhecido e respondido:
- Alô?
- Alô? – algo respondeu
- Preciso saber… é alguém como eu?
- Preciso saboré elguém com’eu?
- Que som você faz?
- Que shom vossefas?
E assim minhas palavras tentavam ser copiadas, como se um ser estudioso analisasse cada centímetro das minhas falas. Talvez não soubesse falar por si só, apenas reproduzir toscamente alguns sons. Quem sabe passou tanto tempo sendo ele mesmo que passou a copiar tudo, inclusive a si, sendo que qualquer coisa diferente não poderia ser absorvida… seu mundo era um retrato de algo que não conhecia. Não sabia de mais nada fora dele. E então…
- prrae trazheunciii ka’ham… quirtumiana balaey…
E eu:
- prai trajeuncil kãm? quirtumiana balei?
Mal me vi e também reproduzia aquilo que não sabia. Nunca imaginava que haveria de ter sons que faziam algum sentido, mas que eu não os entendia. E também conclui que o outro corpo devia ser igual a mim… afinal, temos os mesmos impulsos, as mesmas tendências, fora este calor familiar que nos cerca.
Pensei o impensável. Avancei em direção à respiração rouca perto de mim. Com meus primeiros passos, escutei outros, adiante, no mesmo caminho. A aproximação era lenta, e a cada passo meu, sabia que havia um passo dele, como uma fuga velada. Quando me dei conta que o tirava do lugar que possivelmente ficara durante toda a sua vida, parei, com medo de ter arruinado o eterno conforto de alguém. Dois momentos depois, um estrondo percorreu o escuro, com sons metálicos e tilintantes e depois um baque surdo. Não sabia se fugia eu ou se fugira ele, mas minhas dúvidas se dissolveram quando um gemido agudo e baixo se deu início, meio progressivamente. Não sei ao certo que tipo de feitiço poderia ser (minha mãe já falara sobre uns tipos que encantam outros… e do resto já não lembro), mas algo em mim doeu. Uma dor intensa que subia e fazia-me tremer tudo aquilo que não conheço. De repente, a dor transbordou pelo meu rosto e, novamente, tive as mesmas atitudes que meu irmão-de-raça: um som feio e inconstante saía desde o ventre até a boca, e já não tinha controle sobre mim mesmo.
Imaginei… não, absorvi toda a dor exalada no grito de meu irmão. Presumi que estava no chão, então me estiquei abaixo. Toquei. Estranho. Há tanto tempo que não tocava nada além de meus próprios instrumentos, e encontro o mesmo tecido áspero e duro e os gemidos não cessavam. Passeei pelo corpo desconhecido e me deparei com saliências frias e mais duras ainda. Mais uma vez, experimentei o que nunca tinha me passado antes: uma tristeza calada, surda, mas exposta. Como um passo em falso, um tropeço num momento de certeza. E me dei conta que aquele… ou aquilo poderia não ser como eu… não tinha a minha consistência macia e irregular, mas era reto, mesmo nas imperfeições, frio como eu nunca fui. Abandonei-o.

Foi quando percebi que perdi o ponto que seguia. Dei voltas e voltas (não sei quantas são possíveis dar) e caiu em mim que havia perdido tudo o que já tive: minhas coisas, meu lugar, minhas certezas, meu lugar, trabalho, intrumentos, lugar, descanso, paciência, lugar, etc. Só o grito incessante do bixo áspero às minhas costas. E aí, senti-me fechado, como se me encolhesse para me expandir vigorosamente, como se um ruído mudo bagunçasse meus pensamentos a ponto de não me concentrar em nada.

Uns tempos de caminhada incerta depois, a nuvem que cobria minha mente se dissipava e pude ouvir aquele primeiro (e às vezes maldito) som, que me deslocara pela primeira vez. Já não tinha para onde ir com certeza, então caí nos seus trilhos novamente. Por não sei quanto tempo. Fica difícil medi-lo sem qualquer referência constante (que seja conhecida, ao menos), mas sabemos que ele está lá, observando a todos, controlando seus movimentos num ritmo irônico. Finalmente, ouvi uma voz familiar, mas não tenho certeza se gostei. Vinha ele, com suas frases incômodas e seus sons metálicos, o ladrão de palavras.
- Decepção. Frustração. Raiva. São estes os nomes daquilo que sentes quando se sai de si mesmo!
- Não vale a pena! Não vale! É pequeno, é incerto.
e ainda:
- Se faz melhor quanto menos se olha ao lado!
Suas falas rebatiam em mim, nas minhas intenções fechadas. Medo meu, quando percebi que ele também percebeu. Parou. Sua voz ficou mais seca, aguda, afiada, cortava tuda à frente, até que parava em mim, como ameaça:
- E você? Que anda e nem sabe para onde. Que toca como se houvesse algo no ar. Que busca nada mais que solidão e desespero. E ainda se deixa parar em minha frente e recusar tudo em que viveu! Louco! Pisará em um buraco, em pisos falsos, em nada e cairá, lentamente, até que o corpo trema todo de medo e depois chegue a dor, ardendo em tudo, recobrando todo tipo de vacilo.
Não sei se viu que ainda não mudava minha posição, apesar de estar todo vacilante, mas agravou o tom… me assustei, pois senti que sabia ele tudo de mim:
- Lembra? Lembra de quando despertou outro ser? Estava ele em seus ritmos e sonos constantes e prazerosos. Você o desestabilizou! O fez tropeçar e quebrar tudo aquilo em que havia trabalhado! Além de sentir o que nunca antes experimentara: rugidos de dor, choro! Você! Foi você que causou seu declínio. E simplesmente foi embora…
Quando lembrei daqueles sons estranhos, do calor que em mim fazia, fiquei fraco como nunca. E caí, sem que nada me derrubasse. Ele estava certo, o ladrão de palavras estava… Fui eu que arruinei a vida daquele ser de palavras estranhas… Então, veio-me a mente a ideia mais maluca: Se aquele talvez-irmão dizia coisas totalmente diferentes das minhas, como que este ladrão só falava aquilo que eu entendia? Me dei conta do improvável… Mesmo sem trocar nunca palavras com ele, roubara minhas ideias! Dizia tudo aquilo que me causava medo e temor, criava correntes invisíveis, pesos silenciosos que não permitiam sequer me arrastar. Ao fundo (do que via, ou do meu pensamento, sei lá) apareceu novamente a luz. Me fez lembrar daquelas possibilidades, do porquê estava aqui e não mais ali, de como a vida nem vida direito era… era só repetição.

Ocorreu-me que depois de tempo o ladrão sumira. Levantei e retomei passos, aquele mesmo caminho de antes. O som que emitia a luz tornava-se mais intenso e decifrável. Era todo estranho (como tudo que vinha experimentando), como se as palavras (que não sei se sabia) eram todas juntas, mas dançavam no ar… Sentia-se subir e descer sem nem vê-las e aos poucos vi que meu corpo acompanhava seu ritmo. Quanto mais perto, mais reconhecia sua beleza, e mais tremia adentro

Foram muitos momentos. O feixe de luz era já uma grande foco, que chamaria a atenção de qualquer um que ali estivesse.

Cheguei em frente a ela. O som parou. Todo o resto também. Pensei que ela faria algo, que a escuridão mudaria, mas apenas uma grande expecativa pairava no ar, carregando todos os pensamentos. Senti-me atraído, por um breve instante, mais ainda não sabia o que fazer. Até que meu corpo se esticou sozinho e a tocou, mais fundo e cada vez mais… Até que tudo aquilo que conhecia estava mudado. A deprimente negritude cessara a ponto de haver tantas diversidades de coisas que nunca vira antes, mas traziam consigo um entusiasmo, uma vida incessante e explosiva. Era tudo um tanto claro, e quanto menos claro, mais coisas diferentes apareciam, mas podia-se… ver. Aquele som de outrora aparecia agora com outra forma. Eram conversas, que nunca ouvira antes, mas compreendia como se na minha própria fala:
- Esperei tanto, chamei tanto… Estou todo em cores por ter finalmente chegado. E veja como está mudado!
- Mudado?
- Era aquele homem pequeno e franzino, nunca de estatura, mas de pensamento. Ouviu meu chamado e recompôs forças para me buscar, mesmo que minha insistência teve de ser constante.
- Constante? Não era meu corpo sofrendo?
- Quem o trouxe até aqui em segurança? Segurou os ventos e abriu os obstáculos a sua frente que nem sequer sabia da existência? Quem deixou que sentisse tudo aquilo que precisava para compreender este momento? Quem deixou que vacilasse, mas no momento exato recuperou suas forças, fazendo-o ainda mais forte? E, principalmente, quem deixou que soubesse daquelas coisas que nunca vira ou ouvira antes, como a própria luz? Fui eu que o ensinei desde os primeiros momentos, e preparei para que hoje chegasse aqui, mas ainda não acabou.
Tudo o que ele falava desdobrava-me em mais partes, penetrando em cada parte. Fazia sentido na minha cabeça… e mesmo não entendendo tudo o que acontecera até aqui, tinhas algumas respostas e a sensação de poder conseguir mais.
- Mal chegou e esqueceu a razão por que veio. Não queria se ver? Olhe!
Tornei minha visão para mim mesmo, o máximo que conseguia. E admirei pela primeira vez minha própria forma. Todas ainda sem nome, mas cada um com seu desenho único, suas únicas funções. Todo o funcionamento dos meus dias tomava um sentido novo e me sentia quase completo.
- Não se engane, filho. Ainda não descobriu quem é de fato. A sua próxima opção lhe dirá como será. Poderá você se arriscar no desconhecido de um mundo com respostas – nem sempre as que gosta – e belezas diferentes… estará mais vulnerável por ver os estragos que uma queda pode ter em sua pele, mas conhecerá cada parte do corpo até que chegue o momento de se ver inteiro. Ou poderá voltar para onde estava antes, se achar suficiente, se achar desconfortável. Mas saiba… eu o tenho com rhwlerkj.
Entendia tudo, até aquela última palavra. Era tudo novo e nada podia fazer se não acreditar, mas se algum jeito sabia que o mais importa ainda não havia compreendido. Aquela palavra misteriosa ecoou dentro do meu corpo agora com forma, numa curiosidade desconfortável. Entendi o que ele dizia quando falou sobre um vulnerabilidade desconcertante.
- Não se preocupe. Apenas decifrará a palavra em que pensas quando conseguir me ver.
- E como faço isso?
- Caminhe pelo chão que está – que, por sinal, é terra, mas não qualquer uma… areia.
Cheguei até duas aberturas. Cada qual levava a um lugar.
- Uma delas o leva de volta, e a outra a mim. A escolha é sua… mas ambas as portas estão abertas. A grande leva ao mundo escuro. Seus ancestrais a abriram e a fizeram larga. A pequena o guia pelos meus caminhos. Ela estava trancada, mas foi aberta por um preço alto. Venho esperando e chamando todos os que me quiserem desde então.

Uma parte em mim foi tomada de medo. Percebi que nada seria como antes, mas num intenso e constante desconforto se tomasse a voz como certa. Tudo o que aprendera deveria ser reaprendido. E então me dei conta que nunca duvidara daquela voz e fazia dela toda a verdade. E se fosse simplesmente outro ladrão? Outro que queria-me acorrentado? A sensação de voltar ao que era antes trouxe um completo desânimo. Arriscaria, mesmo se minha vida fosse perdida por isso. Me arrastei pela entrada pequena, chegando no que a voz chamava de “verde”.
- Agora, aonde você está? Para que eu possa vê-lo? Não quer mais que eu veja? – eu clamei.
Veio, então, a luz… E finalmente percebi que este misterioso ser de misteriosas palavras não emitia uma luz, mas era a luz. Chegou, trazendo consigo uma peça que chamou de “espelho”. Levantou e disse:
- Eu quero. Veja!

e, num momento inédito, meus olhos se viram.

22.3.11

A Onda

Meus olhos ardem de intenso pavor
Da visão daqueles meus feitos.
Fazem balançar meu céu,
Partilham minha terra,
Roem meus ossos,
pedaço a pedaço,
metade à metade,
Na louca agonia
De um ritmo louco
Que penetra a carne.
Lá ao fundo se encontra
De sangue um tantinho
Escondido do corpo
Dando-se o direito
(Daquelas leis pessoais
Nem o coração mal sabe)
De consigo esconder a vida.
Deixa, então, aquele resto
Numa desesperada batida
De quem não sabe nadar:
Sabe e vai – apodrecerá
Mais Cedo ou tarde…
A carne, sem sangue
Fará a falta precisa
Que o corpo precisa
Pra terminar de morrer
E não sei enfrentar esta onda!

Meu Pai esquecido,
Faz deste remendo
Quem sabe um dia
Um belo remédio.
Agarra pelos pulsos
Sem que caia e parta
Meus tantos ossos
Que estão à porta.
Bota em mim padrão
Me bota para amar
Sem aquela variação
E inconstância lunar
Que basta a semana
Pra mudar de cara
E nem faz de conta
Que da gente lembra.
Sei que só a sua mão
Pra parar minha perda,
E só esse seu coração
Pra perdoar este louco.

12.1.11

Nas entrelinhas

Dos olhos de um novo rapaz
Aos risos de uma linda mulher
Vemos traços de música,
Sem uma exata harmonia:
Notas cambaleantes e inseguras,
No aguardo do que há de vir,
Ensopam a camisa branca,
Dilatando as pupilas dos solistas
Enquanto o coração dita o passo
Cada vez mais rápido do metrônomo

Em poucos segundos,
Uma colcheia atropela a outra,
Dois arcos se desafiam,
Quatro mãos deslizam pelas teclas
Em desordenada fantasia de calma,
Como um pássaro orgulhoso que cai
Mas tem as asas quebradas.
Toma o veneno sem hesitar,
A vida caminha torta,
Sem mais certo lugar

Até que duas pausas pousam juntas
Seguidas de breve, semi-breve, mínima
Todas elegantes acompanhadas.
Entreolham-se hesitantes
Com confiança, não obstante
Pisam juntas, marcam passo,
Encontram mãos lúdicas
E bocas secas de esperança:
Finda-se a música,
Bem-vinda a dança